Pular para o conteúdo principal

O que mudou na vida dos paulistanos que trocaram o transporte público e o carro pela bicicleta

Spoiler: Eles estão mais felizes!

Para se locomover, no início, o homem usava somente as próprias pernas, mas ao descobrir que poderia domar animais, começou a usá-los como meio de transporte. E, assim, a locomoção passou a ser mais rápida, e o homem conseguia chegar a lugares mais distantes. Muito séculos depois o homem criou duas novas formas para se locomover: o carro e a bicicleta. Os dois meios de transporte passaram por muitas transformações até chegar ao que conhecemos nos dias de hoje. 

O carro foi, por muitos anos, o sonho de consumo de milhões de pessoas, mas o trânsito, a poluição, o estresse, a preocupação com a saúde pessoal e do planeta, têm feito com que uma parcela dessa população mude de objetivo, trocando o desejo pelas quatro rodas do automóvel pelas duas da bicicleta. 

Na cidade de São Paulo, essa troca acontece todos os dias, mas de uns anos para cá, esse número tem ficado expressivo, devido à facilidade que as ciclovias criaram para aqueles que gostam de andar de bicicleta no seu próprio espaço. A construção da primeira na cidade aconteceu no começo dos anos 1970, um avanço tardio se pensarmos que a bicicleta existe no mundo desde o fim do século XIX. Bom ou não, esse avanço só tornou-se um assunto polêmico e começou a ser realmente debatido durante o mandato do ex-prefeito, Fernando Haddad, em 2013.

Durante 4 anos, Haddad construiu centenas de quilômetros de ciclovias e desagradou a muitos, porque dividir um espaço com mais um veiculo era uma tarefa difícil para aqueles que, atrás de volantes de carros, já dividiam seu espaço com as motos e com os pedestres.

A ideia de construir ciclovias e ciclofaixas não veio do nada. Na verdade, faz parte do cumprimento tardio de duas leis de 1990, que foram promulgadas pela Câmara Municipal de São Paulo. A primeira delas, a de número 10.907, sancionada no ano dia 18 de dezembro de 1990, diz o seguinte:

Art. 1º: Fica estabelecido para as construções de avenidas, no Município de São Paulo, a partir da publicação desta lei, da obrigatoriedade de demarcação, de espaços para ciclovias.
Parágrafo Único: Entende-se por ciclovias, espaços demarcados no leito carroçável de avenidas, exclusivas para veículos que não contenham tração motora.
Art. 2º: Fica estabelecido nas atuais avenidas, de acesso aos parques públicos do município, demarcação de ciclo-faixas, destinadas aos usuários nos sábados e domingos
Art. 3º: As despesas decorrentes desta lei correrão por conta de dotações orçamentárias próprias, suplementadas se necessário.
Art. 4º: Esta lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

Graças ao investimento pesado feito pelo ex-prefeito, hoje a cidade tem 468 quilômetros de ciclovias e ciclofaixas, o que representa 30% do total dos 1.521 quilômetros da extensão da cidade. 

Por que e como

O trânsito é um dos grandes motivadores para a troca do carro pela bicicleta, e foi o estopim para a troca de Leonardo Afonso. O administrador de empresas de 43 anos aproveitou para unir a fuga do trânsito com o seu lazer. E daí a bicicleta virou seu meio de transporte.

Mas essa mudança efetiva demorou alguns anos para acontecer. A primeira tentativa aconteceu quando ele tinha apenas 25 anos, em uma época em que a distância entre o seu trabalho e a sua casa era de apenas 1 hora. Essa vontade se deu porque ele sempre gostou de praticar atividades físicas, mas não tinha tempo para isso. Porém, a tentativa chegou ao fim, quando a distância entre os dois lugares aumentou novamente.

Passados alguns anos, Afonso mudou de emprego e descobriu que o tempo do seu trajeto diário diminuiria pela metade se ele começasse a usar a bicicleta novamente. E, para o administrador de empresas, pedalar é uma atividade cheia de bônus, porque além de fugir do trânsito e fazer exercício, ele também usa esse tempo em que está pedalando para refletir. Nesses momentos, ele medita sobre seus planejamentos profissionais e pessoais, e ainda sobre a família. “Eu percebo que melhora a minha disposição logo pela manhã para fazer um exercício, eu me sinto mais motivado durante o meu dia, chego no trabalho com um ânimo melhor.” 

O amor por pedalar começou bem cedo. Aos 7 anos, em uma manhã de Natal no seu quarto, ele se deparou com sua primeira bicicleta. A animação foi imensa, e a magrela tornou-se seu principal hobby. E hoje, ele faz de tudo para usar a bicicleta em todas as oportunidades possíveis, como uma simples ida ao mercado e à padaria. E esse prazer é tão grande que Leonardo, sempre que pode, vê trajetos para aumentar seu tempo pedalando.

A história com a bike também começou cedo na vida do fotógrafo Renato Ribeiro Marques, de 33 anos. Quando ele tinha apenas 4 anos, já andava sem as rodinhas. A sensação do vento no rosto é uma das coisas que ele mais gosta até hoje quando está pedalando. E quando fez 22 anos deixou de usar transportes públicos para se locomover pela cidade de bicicleta. “Comecei a usar a bicicleta como transporte há 11 anos. Acho muito mais prático pegar a bicicleta e sair pedalando do que ir até o ponto de ônibus e esperar o ônibus.”


Dificuldades existem em todos os meios de transporte, mas a bicicleta tem suas particularidades, como a mudança drástica no clima e a falta de um lugar para se trocar. Mas existem também os problemas mais graves quando se está pedalando. Para Leonardo, o principal problema são os assaltos que acontecem nas vias. Já o desrespeito é o problema mais difícil que o Renato e outras dezenas de ciclistas enfrentam todos os dias. “Quando começaram a fazer as ciclovias, senti que os motoristas ficaram enfurecidos, sem respeito nenhum pelos ciclistas. Queriam as ruas só para os carros…. Sempre levo fechadas e finas no trânsito.”

Mas ele acredita que o tempo é o melhor remédio para que motoristas e motociclistas se acostumem com os ciclistas e aprendam a dividir o espaço. No futuro, ele crê que não terá esse tipo de problema, porque as próximas gerações já vão estar mais acostumadas aos transportes alternativos.


Do lazer ao trabalho

Já na vida de outras pessoas, a bike se tornou mais do que um meio transporte. Ela se transformou no modo de “ganhar” a vida. Foi o que aconteceu com a Renata Falzoni, jornalista, arquiteta e criadora do site “Bike é legal”, de 64 anos, e com o Danilo Lamy,  economista e fundador da Bikxi, de 30 anos.

A vida de Danilo Lamy também mudou quando a bike virou seu negócio. Aos 29 anos, ele teve a ideia peculiar de criar um sistema de caronas compartilhadas sobre rodas, algo inédito no Brasil, o Bikxi. “Eu trabalhava no mercado financeiro, e fiquei fora do Brasil por 3 anos, quando me transferiram de volta para cá me deparei de novo com trânsito, tempo perdido com o carro. Nessa volta eu fiquei muitos anos próximo a uma ciclovia e comecei a ir de bicicleta para o trabalho, e com isso conheci a bicicleta elétrica. Com ela, eu chegava super feliz no trabalho, em metade do tempo que levava de carro e não suado. Comecei a incentivar outras pessoas a aderirem a bicicleta como meio de transporte, mas eu via muita resistência das pessoas. E um dia me perguntei: ‘por que não pegar uma bicicleta dupla e colocar uma pessoa profissional que anda, fazendo serviço tipo de caronas compartilhadas, que são feitas por carros?’.”

Lamy então juntou a ideia que sempre teve, a de fazer uma empresa que realmente tivesse impacto positivo para as pessoas, com a vontade de levar sua experiência de ir pedalando para o trabalho, e começou a colocar seu projeto em prática. No início, em agosto de 2017, eram apenas 5, agora já são 8 pessoas que levam  passageiros por mais de 20 quilômetros pela cidade de São Paulo. O Danilo pensa em crescer e levar a ideia para mais e mais pessoas. Já existem 11 bikes prontas para rodar e ele está estudando mais rotas para a Bikxi chegar. E só pedala o passageiro que quiser no Bikxi, por conta de um sistema desenvolvido pela equipe do Danilo.

Já a Renata começou a andar de bicicleta em uma época em que não se era bem visto que mulheres fizessem qualquer coisa além de aprender a cuidar da casa, em que não existiam eletroeletrônicos e em que a magrela era mais cara, e só poucas pessoas tinham acesso a ela.

No final dos anos 50, além dos costumes, a aparência da capital paulistana também era bem diferente. Existiam matas, muitas árvores, poucas construções e se via pouquíssimo movimento de carros na ruas. Mas demorou muitos anos até a bicicleta virar o negócio da Renata. Ela começou transformando o lazer em transporte, assim como o Leonardo. Quando tinha 24 anos, ela doou o seu carro e começou a fazer seus percursos de bike. Quando se mudou para a Vila Madalena, sua casa ficou próxima da escola e do trabalho, então andar de bicicleta se tornou algo “intrínseco à mobilidade”. “De onde eu morava até o Mackenzie, onde eu estudava, era um trajeto de 15 minutos no máximo. Isso foi quando eu redescobri a cidade, passei a ver por outra órbita, foi muito importante para mim.”

Apesar de ter se formado em arquitetura, a escola da vida decidiu levá-la por outro caminho, e a ensinou a ser jornalista. Em quase 30 anos, ela trabalhou em diversos programas de TV e rádio abordando temas voltados para turismo, bike e mobilidade na cidade. Ela se tornou mais especialista nos assuntos quando começou a fazer matérias fora do Brasil. Durante 18 anos no programa “Aventuras com Renata Falzoni”, ela passou por 28 países e notou muitas diferenças culturais, no modo de andar de bicicleta e no jeito de viver dessas populações. 

Renata destaca que nem sempre a estrutura é o item essencial para pedalar tranquilamente. “Cuba é um país que não tem estrutura. Mas você tem as pessoas educadas, conscientes e que se respeitam. É um dos melhores países para se pedalar, tem um baixo nível de motorização, eles andam muito de transporte público, se viram com o que tem. Comparando esses 28 países eu posso colocar o Brasil em um dos piores rankings, em relação ao respeito pela vida. O preço delas é muito barato, o Estado e a população não se escandalizam quando as mortes acontecem.”

Essa falta de respeito pela vida pode ser vista em números. Em 2017, a quantidade de mortes na cidade de São Paulo subiu 75% nos primeiros seis meses, em comparação com o mesmo período do ano passado, segundo o Infosiga, site responsável pelas estatísticas de óbitos no trânsito.

Para Renata, as soluções para que pessoas passem a dar valor à vida são multidisciplinares e devem partir de um pacto entre todos os ministérios, todas as secretarias, todos os órgãos, principalmente da secretaria civil. Na visão da jornalista, eles têm que começar com impunidade zero para os crimes de trânsito. Depois, o poder público também tem que fazer a sua parte. “Eles têm que deixar de lado essas políticas de IPI zero, e da ideia de todo mundo no seu próprio carro. Tem que ter uma equidade nos investimentos no transporte público, educação para todo mundo, velocidades baixas para que as pessoas consigam e tenham respeito entre si.”

Visando divulgar informações sobre direitos dos ciclistas, construções de novas ciclovias e todas as vertentes da bicicleta,  transporte, esporte, lazer e direito social, para um público amador, é que o site “Bike é Legal” foi criado em 2013. O nome foi escolhido para ser ser ambíguo mesmo, para mostrar que a bicicleta pode ser um lazer para quem gosta, mas também legal, no sentido do direito, para mostrar que ela pode ser usada. 


A bicicleta virou mais do que o meio de transporte do Danilo e da Renata, virou um modo de vida. Apesar de todas as dificuldades, eles nunca pensaram em deixar de pedalar. Diariamente ele percorre 30 e ela 10 quilômetros, mas para eles isso ainda é pouco, porque quando se trata de bicicleta, quanto mais melhor. 

Para quem está pensando em transformar a bicicleta no seu meio de transporte, mas acha difícil e nem sabe por onde começar, aí vão algumas dicas. 

“É bom você primeiro conhecer a sua rota muito bem, ver os mapas, talvez fazer um teste no final de semana e você ir confiante, feliz que vai ser a melhor decisão da sua vida.” - Danilo Lamy

"As pessoas que querem pedalar, a primeira coisa é: se não têm bicicleta, podem começar com aquelas bicicletas compartilhadas e fazer trajetos pequenos. O ideal mesmo é conseguir uma bicicleta qualquer, emprestada, e chame a turma do Bike Anjo pra ajudar. O bikeanjo.org é uma turma de voluntários que vai ensinar essa pessoa a pedalar escolhendo as melhores vias e ruas. Com uma bicicleta qualquer, não importa se é boa ou se é ruim, a pessoa vai entender rapidamente o que ela quer e, principalmente, o que ela não quer da bicicleta." - Renata Falzoni

“O essencial é ter um equipamento de segurança, com luva e capacete, utilizar luzes na bicicleta para sinalizar para os motoristas para eles ficarem atentos.” - Leonardo Afonso

“Comece devagar. Muita atenção aos carros. Respeite as leis de trânsito. Pra mim, andar de bicicleta significa viver mais a cidade. Acho que você fica mais humanizado, observa mais as pessoas na rua.” - Renato Ribeiro Marques 




Comentários

Postar um comentário