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Uma carta de adeus



Hoje faz exatos seis dias que você foi embora. Você esteve presente em mais da metade da minha vida, foi o melhor presente de aniversário atrasado que já ganhei, foi meu melhor amigo e meu companheiro durante 17 anos. Com certeza não estava nem perto de te dizer adeus, mas você estava pronto para partir.

Escrever essa carta de adeus é o mínimo que posso fazer para relembrar todos os nossos momentos especiais. É claro que você nunca vai ouvi-la, mas escrevê-la parece ser uma obrigação, para deixar registrada para sempre toda a nossa história.

Eu lembro que tive duas cachorras e fui mordida por outra antes de você nascer. As duas que moravam na minha casa eram boazinhas, mas nunca pareceu, pelo menos para mim, que eram parte da minha vida. Acho que elas fizeram com que eu gostasse de animais de estimação. A terceira, que passou poucos dias na minha casa, e me mordeu quando eu tinha apenas sete anos, com certeza me traumatizou e trouxe pesadelos por muitos anos. Achei realmente que não conseguiria me aproximar de um cachorro novamente, e estava bem com isso. Mas daí você apareceu, apenas quatro anos depois. 

Lembro até hoje da minha mãe contando a novidade. “Olha, apareceu um cachorro na casa do seu tio, mas como ele já comprou outro filhote, não pode ficar com esse, então pediu para gente ir lá ver. Mas a gente só vai ver, tá bom?”. Claro que eu concordei, mas no instante em que te vi, uma bolinha preta de um pouco mais de um mês, me apaixonei instantaneamente, e não te larguei até chegar em casa. A nossa casa. Fiquei brava porque você estragou a minha blusa nova, porque não parava quieto no trajeto todo. Mas a raiva passou tão rápido quanto chegou.

Desde o começo você foi totalmente dependente da gente. No começo com a minha mãe colocando comida e esperando que você comesse tudo. Depois querendo companhia o tempo todo. A fase filhote foi uma das melhores. Ensinamos você a latir, brincar com a bolinha, a pular cadeiras, se esconder… Quando vi, você já tinha atingido o tamanho de adulto no corpo de uma criança.

Como todos, você tinha seus medos e ranços. Acho que foi por causa de um trauma ou só por conta dos barulhos, mas desde pequeno você tinha medo de chuva, trovões e fogos de artifício. Era só um desses se pronunciar e você se escondia debaixo da cama. Gente, como era difícil te tirar de lá. Minha mãe ficava brava e tentava de tudo. Para se defender, você rosnava. E eu, para apaziguar, falava que te tiraria de lá. Com medo de ser mordida novamente, ia aos poucos, na calma e conversando para te tirar. Tentava de tudo, dava ossinhos, trocava ideia. Mas no final, você sempre se rendia e deixava que eu chegasse perto. Confiava em mim, como eu confiava em você.

Mas de todos os medos, acho que a chuva era o pior deles. Você batia com as patas na porta e chorava sem parar. Como uma boa adulta, minha mãe falava para eu te deixar só, que você tinha que se acostumar. Mas eu não aceitava muito bem te ver sofrer, mesmo que fosse por esse motivo. Então, quase todas as vezes, eu saía e ficava do seu lado para te ajudar. Te colocava para dormir, fazia carinho e tentava de tudo para te acalmar. Nem sempre funcionava, mas quando dava certo, me sentia super orgulhosa.

Assim como qualquer adolescente, nem sempre obedecia às ordens de te deixar na sua área. Foram incontáveis as vezes em te coloquei para dentro de casa e te escondi da minha mãe. Falava para você ficar quieto debaixo das cobertas, mas não adiantava e sempre achava que eu estava brincando. Então fazia uma bagunça na minha cama, e, claro, minha mãe te descobria e te colocava para fora. Depois de alguns anos ela já não ligava tanto se você entrava. Claro que isso mudava quando você fazia as necessidades no lugar errado.

Entre os maiores ranços, com certeza era o de gatos. Você detestava os bichanos. Tanto que, quando não queria comer, a gente fazia barulho de miado para você comer. Funcionava. Com raiva você comia bem rápido para que pudesse latir para aqueles peludos que te irritavam.

Apesar de não falar uma única palavra, você sempre me trouxe conforto e segurança. Contava meus problemas, você só olhava para mim, e as coisas já pareciam mais fáceis. Te ver de manhã e ao voltar da escola, depois do trabalho, faculdade e pós, eram as melhores sensações. Sabia que estaria lá, para abanar o rabo e me fazer companhia enquanto separava a minha roupa para o dia seguinte.

Nós tivemos nossos momentos de briga também, como acontece em qualquer relacionamento. Como quando eu ficava brava porque você tinha me mordido forte porque eu tinha forçado a brincadeira, fechava a porta e dizia que não queria ficar perto. Mas a raiva nunca durava muito e quando eu saía para te ver, você estava do mesmo jeito, feliz em me ver.

Tinha coisas que você adorava fazer. Passear, correr atrás de pombos, tomar banho, brincar de bolinha e sentar no meu colo. Desde pequeno, sempre quis ficar perto de mim, e já tinha reivindicado meu colo como seu. Nunca liguei muito, mesmo quando sentava quando eu não estava preparada. E lá você ficava, até que as minhas pernas doessem de focar dobradas. Ah, e você também amava colocar uma roupinha nova. Claro que com o tempo essas coisas foram ficando mais difíceis de serem feitas, e com isso perderam um pouco da graça.

Quanto mais o tempo passava, mais eu me preocupava que um dia você iria embora. Mas sempre pareceu algo bem distante e que ia demorar muito para chegar. Assim como todo ser vivo, você teve seus momentos de doença. Lembro que a primeira e mais grave aconteceu quando ainda era bem jovem. Como qualquer pessoa, nós, seus donos, cometemos erros ao longo da sua vida. Um deles foi de dar comida, aquela que sobrava do nosso prato. Para quê? Você começou a passar muito mal, só vomitava e não comia mais. E essa foi a primeira vez que achei que ia te perder. Até dormi do seu lado para ver se ficaria bem a noite toda. Quando voltou a comer normalmente, fiquei muito aliviada.

Teve outros momentos de doença, mas chegou outro bem tenso. Você teve uma otite que não sarava de maneira alguma. Muito preocupada, te levei no veterinário sozinha pela primeira vez. No alto dos seus 15 anos, te levei para fazer todos os exames que nunca tinha feito na vida. Meu medo de agulha me fez te deixar só para tirar sangue, minha dó fez com que doesse mais em mim do que em você o exame simples do ouvido. A castração foi recomendada depois de um ultrassom.

A veterinária falou dos riscos da operação, mas também tinha falado dos males que você sofreria se não fizesse. Não pude estar do seu lado nesse dia, mas meu coração estava, e só ficou tranquilo quando você voltou da anestesia. Pela primeira vez eu tive certeza que você era um guerreiro, e que lutaria por muitos anos para ficar vivo.

Como todos os seres vivos, você envelheceu. Depois da operação pareceu que o tempo correu duas vezes mais rápido para você. Correr no quintal já não dava, seus olhos mudaram de cor, passear não tinha mais graça – pelo contrário, tinha ficado assustador. Tomar banho era chato, você começou a se cansar com mais frequência, subir na cama já não era legal, e descer sozinho tinha virado um desafio.

No ano seguinte, em uma consulta de rotina, outro mal foi encontrado: problema no rim. Dessa vez não fiquei preocupada porque não me falaram da real extensão. No entanto, o problema estava lá, e seria um dos responsáveis por te levar embora.

Gastos, preocupações e medos foram aparecendo. Pela primeira vez pensei que você não chegaria aos 19, idade que eu tinha visto que uns poodles chegavam. 2020 mal chegou, e meu coração já começou a ficar preocupado por boa parte dos seus dias. Na virada do ano, um pouco antes de pegar no sono, te ouvi gritando. Tinha caído e não conseguia levantar só. Foi só a primeira queda, mas foi marcante e traumatizante. Passou janeiro, fevereiro, março e abril, e você ainda comia só, apesar de já termos mudado a sua alimentação. Ração saiu do cardápio, biscoitinhos também – apesar de você amá-los, eram cheios de sódio, inimigos mortais dos rins. Sim, seu rim não melhorou nem um pouco e descobrimos a gravidade real do problema em junho do mesmo ano, quando te levamos em outro veterinário.

Você estava desidratado, com hérnia de disco, com o problema do rim agravado e muito cansado. Mas ainda conseguia andar um pouco, sem cair. E veio a sua primeira internação. Como foi difícil te deixar lá, sem mim. Achei que iam me ligar durante a noite falando que você tinha ido embora, mas como um bom guerreiro, lutou e voltou para casa. Fiquei tão aliviada e feliz que nem sei dizer o quanto. Mas mal passou um dia, e você teve uma piora novamente. Foi a minha primeira madrugada acordada cuidando de você. Quando começou a sangrar, me desesperei, e achei novamente que você ia embora. Mas não foi.

Os seus últimos dois meses foram os mais difíceis de toda a nossa vida juntos. Você começou a cair com mais frequência, mas me avisava para que pudesse te ajudar. Assim como qualquer pessoa que passa noites acordada, eu me irritava quando precisava levantar para poder te ajudar a ficar de pé. Entretanto a raiva passava, porque você precisava de mim. Perdi os meus medos e nojos, fiz curativos diversas vezes, limpei seu corpo, alimentei, levantei do chão e te dei água quando você já não conseguia beber sozinho.

Minha vida mudou completamente, mudei meu quarto de lugar para ficar bem pertinho de você, passei a seguir seus horários de descanso e agitação. Passei a ficar atenta a qualquer mudança no seu comportamento. Julho passou e você parecia estar melhor. Fez tratamento com soro em casa, passou a comer melhor, a fazer suas necessidades sem a minha ajuda. Uns dias até me permitia pensar que você viveria mais alguns anos. Apesar de todos os nossos esforços, veio agosto e com ele as suas quedas a cada 2 minutos, praticamente. Não queria ver, mas você estava piorando. Teve falta de ar, não tinha mais ânimo para me avisar quando tinha caído. Nem quando estava dormindo ficava tranquilo, seu sono era conturbado.

Sempre antes de dormir, eu ia te ver. No geral, ou estava dormindo ou querendo levantar. Mas na madrugada da segunda passada, você estava de outra forma. Você estava tendo uma convulsão. Nunca tinha visto algo tão terrível de perto assim. Fiquei desesperada, mas de alguma forma consegui pensar e chamei um carro para te levar ao veterinário. Quando trouxeram a agulha para colocar o remédio em você, nem lembrei que algum dia tive medo de agulha. Só queria que você ficasse bem. Uma febre de mais 40º, devido a um problema no rim, te levou pela última vez à sua última internação, e aos seus últimos momentos de vida.

Como dormi naquela madrugada ainda é um mistério para mim. Orei muito para que Deus não deixasse que você sofresse e para que eu pudesse estar do seu lado nos seus últimos momentos. Mas no fundo, eu ainda acreditava que você ia voltar para casa, que ia ficar bem e que ia viver muitos anos do meu lado. No dia seguinte fui te visitar, mas você estava em coma. Foi uma das cenas mais difíceis da minha vida. Achei que você ia me deixar, mas não queria que fosse.

A segunda e a madrugada do dia seguinte passaram. Veio a terça, dia 18 de agosto de 2020, junto com a notícia de que você tinha voltado à consciência, mas que tinha mais problemas de saúde. O fígado estava mal, o rim não ia melhorar, a bexiga estava comprometida, as pernas não se mexiam. Se voltasse para casa, ficaria 24h sob o cuidado de alguém, com dor e sofrendo. Outra convulsão não foi descartada. Fui te ver com plena consciência de que seria a última vez.

O tempo parecia que não passava e eu só queria te ver. Uma opção foi dada e a decisão mais difícil que eu poderia tomar, foi tomada. Não tive muito tempo de pensar ou voltar atrás. Você veio, com uma sonda porque já não conseguia fazer xixi sozinho, e uma agulha com soro e remédios para dor estava na sua patinha. Ficar do seu lado e ver seu último respirar foi mais que difícil, mas foi necessário. Prometi um dia que nunca te deixaria só e por misericórdia de Deus tive a força necessária para estar do seu lado. Te deixar e falar o último adeus foi necessário, mas o cenário não fazia sentido. Como você tinha ido embora? Como eu ia viver sem ter sua companhia? De quem eu ia cuidar e amar? Por que meu melhor amigo tinha me deixado?


Mas foi preciso te deixar partir, porque só sofrimento e dor estavam reservado para seu futuro. Foi necessário muito amor para te deixar. Mas deixei, porque não poderia te olhar e falar honestamente que você tinha voltado para casa para o seu bem. O melhor, para você, era ir.

Para sempre e sempre você será o meu melhor amigo. Aquele que me ensinou a ter paciência, a amar incondicionalmente, a fazer curativos, a ser bondosa, paciente e altruísta. Estou bem longe de ser a pessoa mais legal do mundo, mas eu era a pessoa mais legal do mundo para você. Mesmo sem conseguir andar direito, nos últimos meses você me procurava e queria estar ao meu lado.

Te amo mais que poderia imaginar. Pensar em você imóvel ainda é algo que não sai da minha cabeça, mas agora as imagens de você brincando e me lambendo pela última vez também fazem parte das minhas memórias. Até acabar sua carta de adeus é difícil, mas é inevitável. A vida é uma eterna montanha russa de emoções. Perdas fazem parte quando ela está na parte mais baixa. Mas saber que existe outra subida a caminho me conforta. Saber que você não sofre mais e teve uma vida longa, me conforta. Te dei todo o amor que eu tinha, me perdoa se não foi o suficiente. Apesar da reta final ter sido extremamente difícil de passar, eu faria tudo de novo por você.

Meu melhor amigo, meu companheiro, aqui termina a minha singela homenagem.


Samuca nasceu em fevereiro de 2003 e descansou no dia 18 de agosto de 2020.


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